O Cine Avenida

23 08 2009

O Cine-Avenida de Condeixa foi um marco importante na história desta pacata vila, na primeira metade do século XX. Inaugurado em 2 de Dezembro de 1932, somente dois meses após a chegada do abastecimento eléctrico, foi mais uma das várias realizações de um empresário com larga visão progressista em termos de comércio. Condeixa foi assim uma das primeiras vilas do país a ter um cinematógrafo.

Cine AvenidaCine Avenida

Giuseppe Tornatore, o realizador italiano, dá-nos no seu magnífico filme “ Cinema Paraíso” uma fiel imagem de um cinema da época. Foi inspirado nessa película que escrevi:

CINE-AVENIDA————–CINEMA PARAÍSO

“Os encontros da bola realizavam-se à noite, na Praça. Aliás, a Praça era o local onde os garotos de então se reuniam para as mais diversas formas de diversão. E havia épocas para tudo: o pião, a barra, o “retire”, sem falar nos jogos de espada ou de cobóis, consoante o Cine-Avenida trazia fitas do Errol Flynn ou do Tom Mix, nossos artistas preferidos.

Não é que a gente fosse assim tantas vezes ao cinema! Apesar do preço relativamente baixo do bilhete, se bem me lembro, vinte e cinco tostões para a geral e cinco mil reis para a plateia, eram no entanto quantias incomportáveis para as nossas capacidades financeiras. Porém Joaquim da Costa, o proprietário do cinema, promovia ao sábado à noite uma curta sessão apelidada por nós “Experimentação” que, supostamente, era uma forma de analisar se a película estaria apta a realizar a projecção dominical. Mas, segundo constava, tratava-se de um estratagema de Joaquim da Costa para despertar nas pessoas o desejo de no dia seguinte ver o filme completo. Também se dizia que a breve projecção tinha o fim de incutir nas crianças o gosto de ver cinema. Curiosa forma de proceder desse inteligente comerciante!

Para a “Experimentação” não tocava a campainha que aos domingos, estridente e continuadamente chamava os retardatários à função. Apenas se acendiam os globos brancos por cima do portão principal, sinal para a garotada, diga-se de passagem há muito com os olhos postos na porta vermelha. E quando ela se abria, entrava de rompante por ali dentro, sem o estorvo do Ti Chico Chicharo a cobrar os desnecessários bilhetes. Mas ao domingo também era possível, por vezes, enganar os porteiros e entrar sem comprar os respectivos ingressos obrigatórios.

A coisa era assim…

Bilhete - geralBilhete – geral

Os bilhetes estavam divididos por um picotado e eram cortados à entrada pelo Ti Chico Chicharo, na plateia, ou pelo Ti Zé Fontes lá em baixo, na geral, junto ao malcheiroso urinol. A parte mais larga da senha ficava com os porteiros, enquanto a mais estreita, onde estava indicado o número do lugar e a fila, ficava na posse do espectador.

cinema_B_plateiaBilhete – Plateia

Nas traseiras do cinema, o Quintalão (actual Praça do Município), era o local para onde quem fazia a limpeza do salão despejava o lixo. E com este iam naturalmente os inutilizados talões. A garotada só tinha que lá ir buscá-los e depois, com muito jeito, colar as duas metades. Para a coisa ficar mais perfeita, o António Galhardo, filho de alfaiate, refazia o picotado na máquina de costura e passava os bilhetes a ferro. Pareciam novos!

Bilhete - BalcãoBilhete – Balcão

Cada sessão de cinema tinha cor diferente de bilhete. Se tínhamos alguns com a coloração referente ao dia, era só esperar o fim do som da campainha, sinal que o espectáculo ia começar. Na obscuridade da sala, era mais fácil enganar os porteiros!

O Cine-Avenida, como casa de espectáculos, era um enorme casarão sem qualquer conforto, gélido no inverno e sufocante no verão. A sala tinha um corredor central, a coxia e corredores laterais. Entre estes, filas de cadeiras de madeira, estreitas e desconfortáveis.

Na geral então, as coisas pioravam. Quatro filas de cadeiras colocadas tão perto do ecrã que os espectadores eram forçados a praticar ginástica de yoga para conseguir ver o filme. Recordo um dia, teria aí os meus oito ou nove anos, assisti na geral à exibição do filme “A Múmia”. No momento em que esta, trazida à vida por artes mágicas, caminhou direita ao ecrã, melhor, direita a mim, com aqueles assustadores passos de sonâmbula, confesso que me urinei todo…pelo menos!

Pois esta sala, tal como acabo de a descrever, estava todos os domingos invariavelmente cheia de espectadores. Nas épocas festivas, Natal, Passos e Páscoa, então a sua capacidade era largamente ultrapassada, sendo necessário colocar filas de bancos corridos.

PanfletoPanfleto

É evidente que nessas ocasiões os filmes também tinham de ser especiais. Por isso eram escolhidos a dedo. Dedo do sr. Costa, claro! E se ele tinha jeito para isso! Fátima, terra de Fé – Violetas Imperiais – Frei Luís de Sousa – Marcelino, Pão e Vinho. Filmes que foram o gozo de centenas de cinéfilos!

Durante a semana que seguia à exibição, o desempenho dos actores ou o tema da fita, eram tema quase obrigatório de conversa.

Os filmes da chamada era de ouro do cinema português, passaram todos no Cine-Avenida.” O Pátio das Cantigas – Aldeia da Roupa Branca – Sonhar é Fácil – O Costa do Castelo – O Homem do Ribatejo – A Mantilha de Beatriz – O Cerro dos Enforcados – Camões – Capas Negras – O Leão da Estrela, eu sei lá! Todos! Ali rimos a bandeiras desfraldadas com as peripécias do Vasco Santana e do António Silva, comovemo-nos com os dramas da Milú, da Amália, do António Vilar e do Alberto Ribeiro, enternecemo-nos com a pequenita Maria Dulce, em Frei Luís de Sousa!

Mas não só o cinema português nos entusiasmou. Para a garotada, uma boa aventura do corsário Tyrone Power, do Xerife John Wayne, do marinheiro Kirk Douglas, era o máximo! E as comédias do Bucha e Estica, de Abott e Costello, do Cantinflas ou dos Três Estarolas? Como nos divertíamos!

O Cine-Avenida não foi no entanto apenas cinema. No seu palco foram também apresentados espectáculos de teatro, por grupos da terra ou de fora e as inesquecíveis revistas de sabor popular musicadas pelo inspirado compositor Mestre António de Oliveira.

Revista de António OliveiraRevista de António Oliveira

É por tudo quanto simbolizava o Cine-Avenida que ainda hoje, quando vou a um cinema, não posso deixar de o recordar, com o enorme candelabro de globos lá no alto, o inevitável tango “Rosas Vermelhas” tocado no intervalo, o Manulo com a caixa de rebuçados e chupa-chupas ao tiracolo e, fundamentalmente, a “Experimentação”, parte integrante das nossas actividades lúdicas!”

Excerto do livro “ Crónicas de um Tempo Passado”  de  Cândido Pereira

texto de Cândido Oliveira
edição de MNujo